Lançado no ano de 2003, o filme Os sonhadores (cujo roteiro é assinado por Gilbert Adair, autor de livro homônimo) pode ser assistido como uma espécie de "balanço" feito por Bernardo Bertolucci sobre maio de 1968 na França e sobre o papel exercido pelo cinema no cotidiano social. O turbilhão de transformações sociais e políticas dos anos 1960 influi diretamente na película e possui – arrisco – um papel estruturador. Não consiste no enfoque central da obra, mas nem sempre as estruturas de um prédio estão em primeiro plano – muito raramente isso ocorre. Com tudo isso, digo que a política estrutura o debate acerca das ações que os jovens ali retratados praticam, mas não aparece em todos os momentos. Apesar de ser um "balanço", o diretor busca um certo distanciamento dos fatos, dos processos – não obteve total sucesso nessa tarefa, uma vez que aspectos confessionais transbordam nas falas dos personagens (em especial de Matthew) e no próprio enredo do filme. A reflexão sobre o cinema encaixa-se na reflexão sobre o sonho, sobre a mistura entre realidade e ficção que, em momentos históricos onde surge uma ampliação do campo do "possível" (da realização das "utopias"), é extremamente forte.
Isabelle e Theo são irmãos gêmeos – dois terços do tripé central de personagens completado por Matthew (estudante dos EUA em Paris). Em comum, todos têm o gosto pelo cinema, tanto que se conhecem em uma manifestação contra a demissão, pelo governo, de Henri Langlois, criador da Cinemateca Francesa. Theo representa o jovem intelectual de pensamentos confusos que rejeita tudo o que lhe parece opressivo – utilizando, para isso, mais a emoção que a razão. Isabelle encarna papéis na vida cotidiana, construindo uma vida em seus sonhos, um personagem de si. Possui uma enorme admiração pelo irmão, sendo, em muitos momentos, levada à ação por ele, sem exercer a crítica do que fará. Já Matthew é uma espécie de contraponto racional. Observador exógeno da situação (é estrangeiro e possui uma formação educacional e familiar diferente), discute diversas vezes com Theo (sobre o maoísmo e sobre a utilização de coquetéis molotov, por exemplo) e tenta sempre ponderar – é um importante instrumento do "balanço" que busca realizar Bertolucci.
Da contestação a um ato governamental, os três fecham-se na casa dos irmãos – cujos pais (símbolo de uma autoridade contestada) haviam viajado. As transgressões passam a ser internas: sexo, bebidas, cigarros, discussões intelectuais. O mundo externo - todas as tensões e agitações que ocorriam em Paris, protestos e sirenes de polícia - nada disso atinge os jovens isolados em seu ato de rebeldia individual. A mansão de estilo antigo, ultrapassado, é devastada pelos três, que se descobrem mutuamente, de maneira natural, quase inocente.
O diretor é um "voyeur". O posicionamento muitas vezes discreto, elegante, das câmeras nos mostra essa intenção de Bertolucci. Este parece se deliciar com as aventuras dos jovens, que parecem, estes, estar em constante alienação, recusando adentrar o "mundo" que os cerca. Mesmo Theo, que, antes da imersão nos "sonhos" a três, era ativista, recusa, em dado momento da película, a participar de uma reunião sob alegações vagas de que no momento seria impossível.
A relação entre realidade e sonho é constantemente abordada no filme. Principalmente nas cenas protagonizadas por Isabelle, o cinema surge como sonho, fuga da realidade, mas aparece também em seus aspectos lúdicos. A discussão sobre o "fazer" cinematográfico permeia falas e cenas da obra. Nesse sentido, pode-se dizer que o filme é uma declaração de amor pelo cinema, e não um entendimento deste como alienador. Afinal – esclareçamos agora, caso ainda não seja transparente – o sonho dos três jovens é visto com bons olhos por Bertolucci. A transgressão e o sonho são válidos, pois chegará o momento em que algo maior os trará de volta à realidade – e eles estarão, aí, dotados de força contestatória. O individualismo (com relação ao resto da sociedade) é, neste caso, visto como positivo – até determinado momento.
A sexualidade é transmitida como um elemento natural e sua descoberta e evolução é colocada de forma inocente. A fotografia e as belas tomadas de corpos e cenas de sexo ou manipulação de partes do corpo nu são elementos fílmicos que comprovam a tentativa de naturalizar a ação do desejo. Nada é grotesco ou tenta transmitir o asco, gerando recusa ao ato sexual: a naturalidade e a beleza do sexo são afirmadas. Enquanto Isabelle perde sua virgindade com Matthew, no chão da cozinha, Theo quebra e coloca na frigideira quatro ovos. Além da simbologia da "quebra do ovo", da passagem de fases, há aí uma conotação natural: sexo é tão natural quanto cozinhar. É esta a mensagem de Bertolucci e da juventude transgressora de 1968, que queria discutir abertamente o sexo e a naturalidade do corpo humano, embora estes temas ainda fossem tabus – ressalta-se aí comportamento de Matthew, que ainda reluta muito até assumir sua nudez como natural.
A realidade invade o sonho com a força de uma pedra que estilhaça a janela. Os jovens, preparados pelas transgressões internas e individuais, partem para a rua e, nos poucos minutos de luta externa retratados pelo filme, há espaço para mais uma discussão entre Matthew e Theo, talvez a mais importante para o "balanço" de Bertolucci: quando Theo agarra o coquetel molotov, Matthew tenta dissuadi-lo do ato, pregando a não-violência e mostrando, com beijos, que a melhor maneira de ação é "fazer amor e não a guerra", como se dizia nos idos de 1968. O coquetel atirado inicia uma brutal repressão da polícia francesa. Seria a fala de Matthew uma crítica de Bertolucci ao modo como se agiu em 1968? Não creio que essa seja a melhor indagação a ser feita após assistir ao filme. Porque ele abre seu leque sobre tantas questões interessantes em torno de temas como maio de 1968, juventude e transgressão, interesses particulares versus privados, considero secundário conjecturar acerca de uma postura pessoal do diretor (a menos que isso seja útil para esclarecer alguma outra questão acerca da obra).
O "balanço" de Bertolucci termina ao som da maravilhosa interpretação de Non, je ne regrette rien, feita por Edith Piaf. O título da canção, traduzido, é o seguinte: "Não, não me arrependo de nada". Certamente, esta escolha não foi uma coincidência.
Título em português: Os sonhadores
Título original: I sognatori
Ano de lançamento: 2003
Duração: 115 minutos (aproximadamente 1 hora e 55 minutos)
Direção: Bernardo Bertolucci
Isabelle e Theo são irmãos gêmeos – dois terços do tripé central de personagens completado por Matthew (estudante dos EUA em Paris). Em comum, todos têm o gosto pelo cinema, tanto que se conhecem em uma manifestação contra a demissão, pelo governo, de Henri Langlois, criador da Cinemateca Francesa. Theo representa o jovem intelectual de pensamentos confusos que rejeita tudo o que lhe parece opressivo – utilizando, para isso, mais a emoção que a razão. Isabelle encarna papéis na vida cotidiana, construindo uma vida em seus sonhos, um personagem de si. Possui uma enorme admiração pelo irmão, sendo, em muitos momentos, levada à ação por ele, sem exercer a crítica do que fará. Já Matthew é uma espécie de contraponto racional. Observador exógeno da situação (é estrangeiro e possui uma formação educacional e familiar diferente), discute diversas vezes com Theo (sobre o maoísmo e sobre a utilização de coquetéis molotov, por exemplo) e tenta sempre ponderar – é um importante instrumento do "balanço" que busca realizar Bertolucci.
Da contestação a um ato governamental, os três fecham-se na casa dos irmãos – cujos pais (símbolo de uma autoridade contestada) haviam viajado. As transgressões passam a ser internas: sexo, bebidas, cigarros, discussões intelectuais. O mundo externo - todas as tensões e agitações que ocorriam em Paris, protestos e sirenes de polícia - nada disso atinge os jovens isolados em seu ato de rebeldia individual. A mansão de estilo antigo, ultrapassado, é devastada pelos três, que se descobrem mutuamente, de maneira natural, quase inocente.
O diretor é um "voyeur". O posicionamento muitas vezes discreto, elegante, das câmeras nos mostra essa intenção de Bertolucci. Este parece se deliciar com as aventuras dos jovens, que parecem, estes, estar em constante alienação, recusando adentrar o "mundo" que os cerca. Mesmo Theo, que, antes da imersão nos "sonhos" a três, era ativista, recusa, em dado momento da película, a participar de uma reunião sob alegações vagas de que no momento seria impossível.
A relação entre realidade e sonho é constantemente abordada no filme. Principalmente nas cenas protagonizadas por Isabelle, o cinema surge como sonho, fuga da realidade, mas aparece também em seus aspectos lúdicos. A discussão sobre o "fazer" cinematográfico permeia falas e cenas da obra. Nesse sentido, pode-se dizer que o filme é uma declaração de amor pelo cinema, e não um entendimento deste como alienador. Afinal – esclareçamos agora, caso ainda não seja transparente – o sonho dos três jovens é visto com bons olhos por Bertolucci. A transgressão e o sonho são válidos, pois chegará o momento em que algo maior os trará de volta à realidade – e eles estarão, aí, dotados de força contestatória. O individualismo (com relação ao resto da sociedade) é, neste caso, visto como positivo – até determinado momento.
A sexualidade é transmitida como um elemento natural e sua descoberta e evolução é colocada de forma inocente. A fotografia e as belas tomadas de corpos e cenas de sexo ou manipulação de partes do corpo nu são elementos fílmicos que comprovam a tentativa de naturalizar a ação do desejo. Nada é grotesco ou tenta transmitir o asco, gerando recusa ao ato sexual: a naturalidade e a beleza do sexo são afirmadas. Enquanto Isabelle perde sua virgindade com Matthew, no chão da cozinha, Theo quebra e coloca na frigideira quatro ovos. Além da simbologia da "quebra do ovo", da passagem de fases, há aí uma conotação natural: sexo é tão natural quanto cozinhar. É esta a mensagem de Bertolucci e da juventude transgressora de 1968, que queria discutir abertamente o sexo e a naturalidade do corpo humano, embora estes temas ainda fossem tabus – ressalta-se aí comportamento de Matthew, que ainda reluta muito até assumir sua nudez como natural.
A realidade invade o sonho com a força de uma pedra que estilhaça a janela. Os jovens, preparados pelas transgressões internas e individuais, partem para a rua e, nos poucos minutos de luta externa retratados pelo filme, há espaço para mais uma discussão entre Matthew e Theo, talvez a mais importante para o "balanço" de Bertolucci: quando Theo agarra o coquetel molotov, Matthew tenta dissuadi-lo do ato, pregando a não-violência e mostrando, com beijos, que a melhor maneira de ação é "fazer amor e não a guerra", como se dizia nos idos de 1968. O coquetel atirado inicia uma brutal repressão da polícia francesa. Seria a fala de Matthew uma crítica de Bertolucci ao modo como se agiu em 1968? Não creio que essa seja a melhor indagação a ser feita após assistir ao filme. Porque ele abre seu leque sobre tantas questões interessantes em torno de temas como maio de 1968, juventude e transgressão, interesses particulares versus privados, considero secundário conjecturar acerca de uma postura pessoal do diretor (a menos que isso seja útil para esclarecer alguma outra questão acerca da obra).
O "balanço" de Bertolucci termina ao som da maravilhosa interpretação de Non, je ne regrette rien, feita por Edith Piaf. O título da canção, traduzido, é o seguinte: "Não, não me arrependo de nada". Certamente, esta escolha não foi uma coincidência.
Título em português: Os sonhadores
Título original: I sognatori
Ano de lançamento: 2003
Duração: 115 minutos (aproximadamente 1 hora e 55 minutos)
Direção: Bernardo Bertolucci