O Gabinete do Dr. Caligari

O período entre guerras: crítica aos destroços de autoridade x recuperação de uma imagem em crise

Este filme nos proporciona uma breve noção de uma questão política existente no período entre guerras: a crise da autoridade. Este entendimento é importante para que se entenda o contexto em que viviam os jovens que apoiaram o Partido nazista alemão.
Resumidamente, a obra conta a história de Caligari, velho misterioso que hipnotiza um jovem num parque de diversões fazendo-o prever o futuro dos presentes. Uma previsão feita revela a um espectador que este morrerá num prazo curto de tempo. Por conta desta previsão assustadora e de acontecimentos estranhos na cidade um jovem resolve investigar as ações do hipnotizador e de seu sonâmbulo. Ao fim este jovem revela que Caligari é o diretor de um hospício e utiliza seus pacientes para aplicar técnicas hipnóticas de um apresentador de shows do século XVIII, cujos experimentos ele resolve testar. Contudo, dois finais se apresentam para essa trama: o do roteiro original, no qual o velho é tido como um louco por executar tais ações, acabando numa camisa de força; e o do roteiro modificado por uma moldura cinematográfica colocada pelos produtores, onde toda a história desvendada pelo jovem não passa de um delírio dele, que será tido como louco e acabará no hospício dirigido pelo mesmo personagem que, na verdade, é uma autoridade em seu juízo perfeito.
A versão do roteiro original apresenta uma crítica à figura das autoridades alemãs, representadas na personagem do “Caligari louco”, cuja imposição sobre a sociedade, representada pelo jovem sonâmbulo, tem como objetivo conduzir a atitudes impensadas e de conseqüências trágicas. A versão alterada exclui essa crítica ao reverter a situação, mostrando um “Caligari lúcido” que exerce suas funções de maneira coerente, e um “jovem alucinado” que criou uma situação irreal sobre o diretor do hospício e seu paciente.
A noção de autoridade - ora criticada, ora exaltada - é característica do conturbado período do entre-guerras. Nesse mesmo contexto, em que a obra é concebida como crítica e produzida como exaltação, é que se iniciam vários movimentos políticos e ideológicos que alimentam os ideais e a rebeldia de jovens por toda a Europa - em especial para esta análise, na Alemanha.
O Nacional Socialismo Alemão – Nazismo – será, no mundo ocidental, o exemplo mais radical entre os movimentos que se posicionaram ao lado da idéia de que o resgate de uma autoridade forte se fazia necessário para a reorganização do Estado. E por meio dele milhares de jovens, seus partidários, exerceram seus atos de rebeldia: hipnotizados pela necessidade de mudança e guiados por líderes crentes - tanto quanto eles - em sua capacidade de transformação e na legitimidade de seus meios para isso.
Os autores do filme viveram os horrores da primeira guerra mundial, de seu militarismo e da imposição das autoridades deste sistema e, assim, escreveram seu roteiro: revestidos de um sentimento de aversão a esta realidade. Porém, por alterações da produtora, esse vídeo possui uma grande alteração.
Saindo do caráter crítico pelo qual o filme se caracteriza em sua concepção, é preciso considerar uma questão problemática revelada por ele diante das transformações às quais foi submetido em sua produção: a viabilização comercial da obra. Uma vez aceito por uma produtora, esta impôs como necessária a introdução de uma moldura ao redor desta história para que ele se tornasse “consumível” pelo público ao qual estaria destinado. Assim, aquele produto só seria aceito após passar por um processo de manipulação cujo resultado seria a reversão completa de seu sentido crítico original. Ainda é necessário refletir: a ideologia transmitida por ele a partir de então, considerada pelos produtores mais bem aceita no mercado, é aquela que não pretende romper com os modelos autoritários de governo.
Dessa maneira, o filme apresenta, em certa medida, a realidade política do período em que nasce o Partido Nazista alemão e no qual vivem os jovens e os futuros jovens que o integrariam e levariam adiante seus projetos para uma nova Alemanha.

Título original: Das Cabinet des Dr. Caligari
Ano de lançamento (Alemanha): 1920
Tempo de Duração: 52 minutos
Direção: Robert Wiene
Roteiro: Hans Janowitz e Carl Mayer

Os incompreendidos

Ao lado de Acossado, de Jean-Luc Godard, o primeiro filme de Truffaut é tido como marco inicial da Nouvelle Vague francesa. Como o roteiro do longa-metragem do colega também tinha sido escrito por ele, Truffaut rapidamente se tornou o principal nome do movimento. Depois que Os Incompreendidos ganhou o prêmio de direção no prestigioso Festival de Cannes e concorreu ao Oscar de melhor roteiro, uma honra poucas vezes concedida à produção não-faladas em inglês, o então crítico da revista Cahiers du Cinema sabia que tinha pavimentado uma carreira sólida. Mas, segundo os críticos da época, Os Incompreendidos sempre significou, para ele, muito mais do que uma carreira.

Embora Truffaut não gostasse de falar no assunto, o mundo inteiro sabia que o personagem Antoine Doinel, o garoto de Os Incompreendidos, era o alter-ego do cineasta. Como o menino, ele também havia crescido no seio de uma família pobre que não se entendia e não lhe dava atenção. Ele também fora um delinqüente juvenil, cometendo pequenos furtos pelas ruas de Paris e também passara uma temporada no reformatório. O que Truffaut queria, transpondo essas experiências para a tela, era mostrar ao mundo que o mundo do adolescente não era compreendido pelos adultos.

Os Incompreendidos foi o filme certo na hora certa. Em 1959, ano em que foi lançado, o mundo assistia a uma revolução branca comandada pelos jovens.

O rock’n roll e a moda foram as formas encontradas para expressar tal revolução.

Truffaut conta a história de um jovem de 15 anos que ninguém – pais, educadores, parentes ou policiais – entendia. Antoine Doinel não é bom nem mau, é só um adolescente. O cineasta contou esta história com uma gigantesca dose de carinho pelo personagem.

O resultado final é um filme deslumbrante, poético e melancólico em alguns momentos, suave e cômico em outros, mas sempre compreensivo e caloroso. Doinel mente para os professores e para os pais, rouba uma máquina de escrever, fica preso num reformatório, mas não é um menino malvado. Pena que somente nós, que permanecemos tão perto dele, compreendemos suas ações. Os adultos do filme não o entendem. Não percebem que quando ele cita Balzac numa redação, não está tentando plagiar o grande escritor, mas homenageá-lo. Além disso, Truffaut sabe exatamente como filmar, evitando resvalar a história para o melodrama e nunca tornando-a piegas ou cômica. A obra alcança uma unanimidade da crítica que afirma que Os Incompreendidos permanece o melhor filme sobre adolescentes já lançado.

Vale lembrar ainda que Truffaut tinha tanto carinho pelo personagem que voltaria a ele mais cinco vezes - quatro em longas-metragens e uma em um curta, feito apenas três anos depois de Os Incompreendidos. Todas as aparições de Doinel na tela foram encarnadas pelo ator Jean-Pierre Leáud, cuja performance é um dos maiores trunfos do filme de 1959.

Título Original: Les 400 Coups
Ano de lançamento (França): 1959
Tempo de Duração: 99 minutos
Direção: François Truffaut
Elenco: Jean-Pierre Léaud, Albert Rémy, Claire Maurier, Patrick Aufey

Juventude transviada

A década de 1950 foi decisiva, em termos culturais, para a história do século XX. Foi nessa época em que o abismo de gerações que provocou a mais profunda mudança de rumo na sociedade ocidental desenhou-se: a tomada de poder (econômico, social e, em última instância, cultural) pelos jovens na década de 60. De repente, o mundo começou a perceber que havia uma fissura irremediável entre pais e filhos, entre juventude e meia-idade, entre jovens e velhos. Eram duas gerações que não conseguiam mais dialogar; estavam incomunicáveis.

De fato, Juventude Transviada é mais do que um filme. É um símbolo, um ícone, uma afirmação definitiva do cinema como obra de arte. Naquela época, ainda perdurava uma discussão que hoje parece sem sentido: seria o cinema uma forma válida de arte, ou apenas uma linha de montagem de produtos sem valor artístico algum? Juventude Transviada veio para dissipar qualquer dúvida, dando uma demonstração inequívoca de que o cinema cumpre, sim, a função social da arte.

Trata-se do caso clássico (mas raro) do filme certo feito na hora certa. O longa-metragem de Nicholas Ray, que ao lado de Hitchcock era o diretor mais cultuado entre os críticos franceses da Nouvelle Vague (leia-se Jean-Luc Godard, François Truffaut e outros futuros cineastas), mostrou que Hollywood estava em sintonia com as ruas. Nicholas Ray percebeu a proliferação de gangues juvenis em Los Angeles e achou que isso daria um bom filme. As gangues eram um fenômeno interessante, mas por trás daquela revolta juvenil havia mais. Havia um movimento contínuo e inconsciente da juventude, que começava a se emancipar e ganhar uma voz, algo que não ocorria nas gerações anteriores.

Para completar, um fator extra-filme contribuiu para tornar o longa-metragem mais do que uma obra cinematográfica: a morte de James Dean. O jovem ator morreu um mês antes de o filme estrear, num acidente de carro causado por direção imprudente. Ele repetia, na vida real, uma das grandes cenas de Juventude Transviada. Morria jovem e belo. A união do personagem rebelde que o ator interpretou com a morte precoce produziria um fenômeno da cultura pop. Dean virou um dos maiores mitos do século XX, a encarnação perfeita do jovem que vive segundo a filosofia do “viva hoje sem pensar em amanhã”.

O acidente fatal de James Dean foi crucial para fazer de Juventude Transviada um marco cultural. Afinal, pelo menos duas outras imagens poderosas que simbolizavam a fissura entre jovens e velhos nasciam na mesma época: Marlon Brando vestido de couro negro e sentado numa motocicleta, em “O Selvagem” (1954), e Elvis Presley (1956). A morte James Dean, de certa maneira, o tornou imortal. Virou uma imagem simbólica de rebeldia insaciável. Com o passar dos anos, Juventude Transviada apenas reforçaria esse símbolo.

Em relação ao filme, Nicholas Ray fez toda a ação dramática concentrar-se em um período de apenas 24 horas e criou uma abertura engenhosa, com uma longa seqüência em que os três personagens principais, que não se conhecem ainda, se cruzam na Delegacia de Menores de Los Angeles. Jim Stark (James Dean) foi detido por embriaguez, Judy (Natalie Wood) por ter brigado com o pai, e Plato (Sal Mineo), por ter atirado em cães. A câmera se detém por alguns minutos em cada, e enfatiza a semelhança entre eles: todos são jovens envoltos em sérios problemas de relacionamento com os pais. O desenrolar da ação fará com que os três se conheçam e vivam uma aventura trágica no dia seguinte, com clímax num cenário espetacular, que evoca a própria situação emocional dos três: uma mansão abandonada.

O filme criou muitas modas, algumas fugazes (durante os meses seguintes, jaquetas vermelhas iguais à de James Dean viraram coqueluche mundial).

A obra retrata bem o pensamento e o costume revolucionário dos anos 50 e mostra a rebeldia contra os conservadores nos contexto pós II Guerra Mundial e contra o “manter as aparências”, não só no âmbito social, mas também no âmbito familiar. Já se vê nitidamente o rompimento com as instituições familiar e escolar. Há vontade nessa juventude de subverter, de emancipar. A ordem é restabelecida pelas velhas instituições: família, Estado e a representação da polícia.
Para entender a atitude dos jovens nesse filme é preciso analisar a época e o contexto sócio-histórico. Só assim é possível compreender essa rebeldia que tem causa e ganhará força, culminado na revolução dos anos 60.

Título Original: Rebel without a case
Ano de lançamento (EUA): 1955
Tempo de Duração: 111 minutos
Direção: Nicholas Ray
Elenco: James Dean, Natalie Wood, Sal Mineo, Jim Backus


Réquiem para um sonho

Dirigido por Darren Aronofsky, Réquiem Para um Sonho, assim como seu filme anterior Pi, constitui-se de montagens de cenas extremamente curtas. Na média, um filme de cem minutos possui entre seiscentos a setecentos cortes, já Réquiem apresenta mais de dois mil[1]. Outro recurso usado é a divisão da tela.

As cenas intensas do filme são alternadas rapidamente e, acompanhadas por uma trilha sonora, ascendem intensamente. Após o clímax, há uma breve serenidade até o final, o qual retrata quatro vidas devastadas.

O filme é uma visão frenética, perturbada e única sobre pessoas que vivem em desespero e ao mesmo tempo cheio de sonhos. Harry Goldfarb (Jared Leto) e Marion Silver (Jennifer Connelly) formam um casal apaixonado, que tem como sonho montar um pequeno negócio e viverem felizes para sempre. Porém, ambos são viciados em drogas, o que faz com que repetidamente Harry penhore a televisão de sua mãe (Ellen Burstyn), para conseguir dinheiro, tendo sempre ao seu lado seu amigo Tyrone C. Love (Marlon Wayans), cujo sonho é escapar das ruas e deixar sua mãe orgulhosa. Os três, na tentativa de realizarem seus sonhos, se envolvem com narcotráfico. Já Sara, mãe de Harry, é viciada em assistir programas de TV. Até que um dia recebe um convite para participar do seu show favorito, o "Tappy Tibbons Show", que é transmitido para todo o país. Para poder vestir seu vestido predileto - o que não é pura predileção, o vestido assume uma simbologia maior sobre o sonho americano na vida desta personagem, pois foi este o vestido que ela usou na formatura de seu filho, o momento de mais orgulho de sua vida, e também era o vestido que seu finado marido mais gostava - Sara começa a tomar pílulas de emagrecimento receitadas por seu médico que nem sequer olha para a paciente. Aos poucos, Sara começa a tomar cada vez mais pílulas até se tornar uma viciada neste medicamento.

Com estrutura de fábula, o filme passa por três momentos, verão, outono e inverno, que mostram a queda em espiral do auge da felicidade e conquistas dos sonhos (verão) e chega na mais profunda devastação de suas almas (inverno). A sanidade de Sara se vai e ela acaba hospitalizada contra a vontade, onde ela passa por tratamento de choque. Harry e Tyrone viajam para a Flórida, acreditando poder recomeçar a vida lá, mas a condição cada vez pior do braço de Harry o força a ir ao hospital, onde eles são presos após o médico se espantar com o estado de seu braço e reconhecer a situação como típica de um viciado. Harry tem seu braço amputado. Tyrone precisa lidar com guardas racistas e hostis, trabalho forçado e abstinência das drogas sozinho. Marion vai se degradando em orgias em troca de heroína, enquanto Sara torna-se catatônica em um asilo para doentes mentais.

Mais do que um filme sobre drogas, a obra de Aronofsky trata sobre a obsessão da humanidade com a evasão e a necessidade de se preencher um vazio. Apesar do filme não tratar só a juventude, três dos quatro personagens centrais do filme (Harry, Marion, Tyrone) são jovens que querem elevar suas vidas a um outro significado que fuja da estrutura familiar social estadunidense que lhes é esmagadora, principalmente no caso de Marion, que vem de uma família rica cujos pais pagam seu apartamento e suas sessões de terapia, que ela abandona sem eles saberem. Numa fala do filme, quando perguntada por Harry porque não se dá bem com seus pais, Marion diz que não é o dinheiro que ela quer dos pais. A vida confortável que ela pode levar com os pais não é suficiente para encher o vazio existencial de seus sentimentos. A rebeldia desses personagens perante um mundo que não lhes pode ser completo os leva a sua destruição através de seus vícios.

Ainda que, com estrutura de fábula, como disse o próprio diretor, o filme possua uma “lição de moral”, este não chega a ser moralizante. É um ataque contras as drogas sem dúvida, mas é mais uma penetração nas profundezas das almas desses personagens, que fogem da realidade que não lhes pode ser saudável e entram na crença de seus delírios. Contudo a saída que escolhem – seus vícios - não é capaz de socorrê-los. Nem a realidade do sonho americano que o filme desfigura , nem o caminho pelos vícios é a solução. Nas palavras de Aronofsky, “as quatro personagens têm muitos sonhos e esperanças, mas a dureza de sua realidade os destrói devagar”[2].

Com uma direção excepcional e atuações brilhantes, principalmente de Ellen Burstyn, que concorreu ao Oscar de melhor atriz, o filme é uma análise “barra pesada” dos vícios, muito criativo e original. Infelizmente, a distribuidora errou em lançar no Brasil a versão cortada; nos EUA há outra melhor, sem censura, que passou nos cinemas e virou cult.


Título Original: Requiem for a Dream
Gênero: Drama
Ano de Lançamento (EUA): 2000
Estúdio: Artisan Entertainment / Industry Entertainment
Distribuição: Artisan Entertainment / Summit Entertainment
Direção: Darren Aronofsky
Roteiro: Darren Aronofsky, baseado em livro de Hubert Selby Jr.
Produção: Eric Watson e Palmer West
Música: Clint Mansell
Direção de Fotografia: Matthew Libatique
Desenho de Produção: James Chinlund
Direção de Arte: Judy Rhee
Figurino: Laura Jean Shannon
Edição: Jay Rabinowitz
Efeitos Especiais: Amoeba Proteus


NOTAS
[1] Dado segundo o site The Internet Movie Database (IMDb).
[2] Entrevista com Darren Aronofsky nos extras do dvd.

O ano em que meus pais saíram de férias

O filme se passa no ano de 1970. Mauro é um garoto mineiro de 12 anos, que adora futebol e jogo de botão. Um dia sua vida muda completamente, já que seus pais saem de férias de forma inesperada e sem motivo aparente para ele. Na verdade, os pais de Mauro foram obrigados a fugir por formarem um casal militante de esquerda e serem perseguidos pela ditadura militar no Brasil, tendo que deixá-lo com o avô paterno (Paulo Autran). Porém, o avô enfrenta problemas e algo inesperado ocorre com ele, o que faz com que Mauro tenha que ficar com Shlomo, um velho judeu solitário que é seu vizinho. Enquanto aguarda um telefonema dos pais, Mauro precisa lidar com sua nova realidade, vivendo momentos de tristeza pela situação em que vive e também de alegria, ao acompanhar o desempenho da seleção brasileira na Copa do Mundo do México. A paixão pelo futebol, o desenvolvimento de sua sexualidade, novas amizades e a vivência em um mundo completamente diferente do qual até então vivia são algumas pautas abordadas no enredo. Toda a história se desenvolve com as inesperadas férias que os pais do garoto “usurfruem”, sendo o encrudescimento da ditadura e os jogos do Brasil no México, rumo ao título de 1970, o pano de fundo para a narração dos conflitos vividos por Mauro.

Em O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, a Copa do Mundo de 1970 monta o cenário e a ditadura militar no Brasil é o ponto de partida pelo qual o enredo discorrerá. A história do filme é toda baseada nas transformações que ocorrem na vida do protagonista, Mauro, de apenas 11 anos. Essas transformações são decorrentes da mudança que Mauro é obrigado a passar já que quando seus pais saem de férias sem data certa para voltar, o garoto (de Belo Horizonte) é obrigado a conviver com seu avô em São Paulo.

A história que se passa em 1970 narra as aventuras e descobertas do jovem protagonista, todas elas diretamente relacionadas com a fuga que seus pais são obrigados a realizar para se livrarem da perseguição do governo militar. O jovem casal militante da esquerda política deixa o filho no Bairro do Bom Retiro em São Paulo para que procurasse o avô buscando moradia e cuidados durante as forçadas férias dos pais. Pelo oportunismo do destino, o avô de Mauro morre e o menino acaba acolhido por um vizinho, um judeu solitário e ranzinza com quem o garoto pouco a pouco vai desenvolvendo uma relação de amizade e confiança.

Durante todo o filme, boa parte das atuações referentes à ditadura militar no Brasil é amenizada pelo forte relacionamento que o menino tem com o futebol. A Copa do Mundo de 1970, e os jogos do Brasil a todo o tempo permeiam os fatos narrados no filme, desviando bastante a atenção das perseguições realizadas pelos militares. Mesmo com grande crítica por tratar a ditadura militar no Brasil apenas como pano de fundo, para um espectador mais atento é possível pensar a obra como uma ficção criada em cima de uma das inúmeras conseqüências que o regime militar provocou na vida dos brasileiros.

Em meio ao desaparecimento de pessoas, mortes, prisões, deposições, condenações e vários exilamentos, a fuga dos pais de Mauro das perseguições que sofreram é mais uma conseqüência. O pequeno trecho de vida de Mauro, narrado na obra, o sofrimento de seu personagem e as aventuras e desavenças pelas quais o menino passa são todas ocasionadas pelas inesperadas férias de seus pais, ou seja, frutos da intransigência política vigente na década de 70, quando sob o governo do general Ernesto Garrastazu Médici o Brasil conheceu um dos momentos mais obscuros da ditadura.

O drama de Mauro é, segundo o diretor Cao Hamburguer, o drama de muitas pessoas que sofreram com a ditadura militar, mas acima de tudo o drama de um garoto em fase de transição da infância para a adolescência, que se vê obrigado a se virar sozinho no mundo sem a presença dos pais. Com as palavras do diretor pode-se entender o filme como um drama leve, produzido para toda a família, longe de qualquer intenção de denunciar a ação militar no Brasil, mas passível de aproximá-la a muitos jovens da mesma faixa etária de Mauro, proporcionando uma reflexão sobre o tema.

Com diálogos curtos, excelente caracterização indumentária e um cenário muito bem construído e apresentado, o filme peca ao priorizar algumas brincadeiras pueris, quando poderia dar seqüência a atuação das organizações de militantes de esquerda, alcançando, no mínimo, a mesma dinâmica conquistada com as cenas cômicas sem, no entanto, perder o elo original pretendido pelo diretor.

O filme mistura momentos de tensão, ocasionados pela ação dos militares na vida dos personagens, à momentos de alegria proporcionados por exemplo pelas vitórias alcançadas pela seleção brasileira de futebol, na Copa do Mundo do México. Devido ao enredo, fica difícil compreender a finalidade pela qual o filme foi produzido, mas sem dúvida sua história é elaborada para abarcar diferentes nichos da sociedade.

É interessante perceber que o roteiro é trabalhado a partir do elemento mais lembrado por pessoas que passaram pela ditadura militar no Brasil sem, no entanto, carregar marcas expositivas. O tricampeonato do Brasil no México é lembrado por todos os jovens que viveram a década de 70 como um “possível” bom momento da ditadura no país.

A tomada de ângulos ao longo das cenas varia muito pouco, fato que pode ser conjugado, no enredo, com a inércia que o pequeno Mauro vive. Apesar dos novos sentimentos que a vida lhe apresenta através das novas amizades e momentos de descontração vivenciados com os colegas de bairro, o protagonista está sempre a espera do retorno de seus pais.

Título Original: O ano em que meus pais saíram de férias (Brasil)
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 110 minutos
Ano de Lançamento: 2006
Site Oficial: www.oano.com.br
Estúdio: Gullane Filmes / Caos Produções Cinematográficas / Miravista / Globo Filmes
Distribuição: Buena Vista International
Direção: Cao Hamburger
Roteiro: Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaert e Cao Hamburger, baseado em história original de Cláudio Galperin e Cao Hamburger
Produção: Caio Gullane, Cao Hamburger e Fabiano Gullane
Música: Beto Villares
Fotografia: Adriano Goldman
Direção de Arte: Cássio Amarante
Figurino: Cristina Camargo
Edição: Daniel Rezende

Macunaíma

Macunaíma é um herói preguiçoso, sem caráter e safado. Nasceu em meio à mata, já grande, e só começou a falar aos seus seis anos de idade, prova cabal de sua preguiça. Esse personagem, durante o filme, representa o brasileiro. Seus jeitos e trejeitos, suas expressões e seus diálogos cômicos, suas atitudes e confissões. Macunaíma, de negro, se transforma em branco e do sertão migra para a cidade com os irmãos, buscando um compêndio de todas as vivências e aventuras possíveis no país. Macunaíma vive várias aventuras na cidade de forma zombeteira, conhecendo e amando guerrilheiras e prostitutas, enfrentando vilões milionários, policiais, personagens de todos os tipos. Cada personagem na obra e sua relação com o protagonista se identifica a uma metáfora de alguma das estruturas sócias do Brasil. O filme, homônimo da obra textual de Mário de Andrade – Macunaíma -, resgata a obra que, por excelência, representa a construção - ou até mesmo forjação - de uma identidade cultural brasileira.

Em Macunaíma, filme produzido em 1969 por Joaquim Pedro de Andrade, temos a expressão cinematográfica da obra de Mário de Andrade. O filme retrata com ardente fidelidade cenários, mitos, passagens, diálogos, costumes e representações. Todos elementos foram retirados e inspirados da obra textual do poeta modernista brasileiro.

O filme alcançou logo em sua estréia um sucesso indiscutível em todos os âmbitos. Sucesso de público, de crítica e de realização pessoal do cineasta Joaquim Pedro, Macunaíma é fruto de uma nova manifestação que o cinema do Brasil passa a trabalhar: foi um dos primeiros filmes do Cinema Novo (caracterizado pela preocupação temática e pela pesquisa de linguagem) e pilar estrutural de toda uma retórica de obras fílmicas que será produzida na década de 70 no Brasil.

Por trás da “comédia bufa” - como designou Alberto Shatovsky - se escondem, ou brilham de forma intensa, personagens que representam uma crítica a todo o universo social e cultural do Brasil de até então. O protagonista do filme, já nasce grande e só começa a falar aos seis anos de idade, o que representaria na obra tanto de Mário de Andrade como de Joaquim Pedro o universo preguiçoso que ronda e assola o povo brasileiro contra o ideal de trabalho. Junto a esse, outro elementos do Brasil são misturados no filme, como o mau-caratismo, o subdesenvolvimento, o tropicalismo e os preconceitos.

Em Macunaíma, a construção das cenas das imagens e do roteiro do filme permitem afirmar que Joaquim Pedro teve que fazer um amplo estudo da obra literária. Segundo Ely Azevedo, o livro permite que vários roteiros de obras audiovisuais sejam feitos, porém o de Joaquim Pedro é o suficiente para ser eternizado devido à eficácia, objetividade e agilidade com que o filme expressa o teor central da obra. Assim, o processo de criação do Cinema Novo, da mesma forma que o modernismo, estruturou-se em cima da Semana de Arte Moderna de 22.

Joaquim Pedro, ao seguir Mário de Andrade, consegue transmitir em sua obra um Brasil vibrante através da utilização e locação dos cenários, das cores utilizadas em cena, do figurino e da construção da linguagem, ao mesmo tempo em que revela, explora e dialoga com os problemas do país e de sua população. A evidência no filme de um “Brasil muito brasileiro” é o ponto de partida para assimilação e transformação da cultura popular pelo artista, pois toda uma realidade muito típica conseguiu ser retratada de forma satírica, mas real, em cada cena de Macunaíma.

A comédia de Joaquim Pedro já se inicia com o nascimento do protagonista em meio à mata virgem. Essa representação já demonstra o desejo de explorar o inexplorado, de revelar o Brasil que surge da tipicidade de seu povo e de sua própria cultura. Cultura essa que, aliás, dialoga com si mesma ao refletir o típico modo de vida do brasileiro, ou a construção cultural pitoresca do povo.

O caminho percorrido pelo protagonista, na obra textual e em sua representação fílmica, é metaforizado concomitantemente às passagens culturais e sociais de Macunaíma. A alegoria da população brasileira em sua diversidade, que se transforma em unicidade, se dá pelos percalços discorridos durante a obra.

Apesar dos poucos cortes expressivos e de muitos elementos colocados para que o espectador os decifre, sobram cores, movimentos e diálogos construídos em cima de linguagem própria, o que muitas vezes acaba por dificultar seu perfeito entendimento.

Esses mesmo movimentos, agilidade textual e jogo de cores mascaram a falta de dinamismo ocasionado pelo pouco uso de filmagens de variados ângulos. Em toda sua dimensão o filme ganha dinâmica ao mesmo tempo em que se revela a cada cena uma nova representação visual. A curiosidade por novos acontecimentos e os atos cômicos de Macunaíma sustentam, de certa forma, o interesse pelo fim que ocorre sem grandes descobertas ou evoluções. O personagem principal termina o filme retornando à selva depois longa e tumultuada passagem urbana.

Será que esse fim também metaforiza alguma representação de costumes do brasileiro? Talvez a obra escrita por Mário de Andrade e a obra produzida por Joaquim Pedro conjuguem uma curiosidade sinônima. Por mais que se tente mudar a realidade, o que se vê até hoje no Brasil ainda continua como passível regravação do clássico de Joaquim Pedro em seus mesmos moldes, enquanto a obra de Mário de Andrade continua atual e sempre renovada pelas vicissitudes de nosso país.

Título Original: Macunaíma (Brasil, 1969)
Gênero: Comédia
Tempo de Duração: 108 minutos
Estúdio: Grupo Filmes / Condor Filmes / Filmes do Serro
Distribuição: Embrafilme
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade, baseado em livro de Mário de Andrade
Produção: Joaquim Pedro de Andrade
Música: Jards Macalé, Orestes Barbosa, Silvio Caldas e Heitor Villa-Lobos
Fotografia: Guido Cosulich e Affonso Beato
Desenho de Produção: Anísio Medeiros
Figurino: Anísio Medeiros
Edição: Eduardo Escorel

Os sonhadores

Lançado no ano de 2003, o filme Os sonhadores (cujo roteiro é assinado por Gilbert Adair, autor de livro homônimo) pode ser assistido como uma espécie de "balanço" feito por Bernardo Bertolucci sobre maio de 1968 na França e sobre o papel exercido pelo cinema no cotidiano social. O turbilhão de transformações sociais e políticas dos anos 1960 influi diretamente na película e possui – arrisco – um papel estruturador. Não consiste no enfoque central da obra, mas nem sempre as estruturas de um prédio estão em primeiro plano – muito raramente isso ocorre. Com tudo isso, digo que a política estrutura o debate acerca das ações que os jovens ali retratados praticam, mas não aparece em todos os momentos. Apesar de ser um "balanço", o diretor busca um certo distanciamento dos fatos, dos processos – não obteve total sucesso nessa tarefa, uma vez que aspectos confessionais transbordam nas falas dos personagens (em especial de Matthew) e no próprio enredo do filme. A reflexão sobre o cinema encaixa-se na reflexão sobre o sonho, sobre a mistura entre realidade e ficção que, em momentos históricos onde surge uma ampliação do campo do "possível" (da realização das "utopias"), é extremamente forte.

Isabelle e Theo são irmãos gêmeos – dois terços do tripé central de personagens completado por Matthew (estudante dos EUA em Paris). Em comum, todos têm o gosto pelo cinema, tanto que se conhecem em uma manifestação contra a demissão, pelo governo, de Henri Langlois, criador da Cinemateca Francesa. Theo representa o jovem intelectual de pensamentos confusos que rejeita tudo o que lhe parece opressivo – utilizando, para isso, mais a emoção que a razão. Isabelle encarna papéis na vida cotidiana, construindo uma vida em seus sonhos, um personagem de si. Possui uma enorme admiração pelo irmão, sendo, em muitos momentos, levada à ação por ele, sem exercer a crítica do que fará. Já Matthew é uma espécie de contraponto racional. Observador exógeno da situação (é estrangeiro e possui uma formação educacional e familiar diferente), discute diversas vezes com Theo (sobre o maoísmo e sobre a utilização de coquetéis molotov, por exemplo) e tenta sempre ponderar – é um importante instrumento do "balanço" que busca realizar Bertolucci.

Da contestação a um ato governamental, os três fecham-se na casa dos irmãos – cujos pais (símbolo de uma autoridade contestada) haviam viajado. As transgressões passam a ser internas: sexo, bebidas, cigarros, discussões intelectuais. O mundo externo - todas as tensões e agitações que ocorriam em Paris, protestos e sirenes de polícia - nada disso atinge os jovens isolados em seu ato de rebeldia individual. A mansão de estilo antigo, ultrapassado, é devastada pelos três, que se descobrem mutuamente, de maneira natural, quase inocente.

O diretor é um "voyeur". O posicionamento muitas vezes discreto, elegante, das câmeras nos mostra essa intenção de Bertolucci. Este parece se deliciar com as aventuras dos jovens, que parecem, estes, estar em constante alienação, recusando adentrar o "mundo" que os cerca. Mesmo Theo, que, antes da imersão nos "sonhos" a três, era ativista, recusa, em dado momento da película, a participar de uma reunião sob alegações vagas de que no momento seria impossível.

A relação entre realidade e sonho é constantemente abordada no filme. Principalmente nas cenas protagonizadas por Isabelle, o cinema surge como sonho, fuga da realidade, mas aparece também em seus aspectos lúdicos. A discussão sobre o "fazer" cinematográfico permeia falas e cenas da obra. Nesse sentido, pode-se dizer que o filme é uma declaração de amor pelo cinema, e não um entendimento deste como alienador. Afinal – esclareçamos agora, caso ainda não seja transparente – o sonho dos três jovens é visto com bons olhos por Bertolucci. A transgressão e o sonho são válidos, pois chegará o momento em que algo maior os trará de volta à realidade – e eles estarão, aí, dotados de força contestatória. O individualismo (com relação ao resto da sociedade) é, neste caso, visto como positivo – até determinado momento.

A sexualidade é transmitida como um elemento natural e sua descoberta e evolução é colocada de forma inocente. A fotografia e as belas tomadas de corpos e cenas de sexo ou manipulação de partes do corpo nu são elementos fílmicos que comprovam a tentativa de naturalizar a ação do desejo. Nada é grotesco ou tenta transmitir o asco, gerando recusa ao ato sexual: a naturalidade e a beleza do sexo são afirmadas. Enquanto Isabelle perde sua virgindade com Matthew, no chão da cozinha, Theo quebra e coloca na frigideira quatro ovos. Além da simbologia da "quebra do ovo", da passagem de fases, há aí uma conotação natural: sexo é tão natural quanto cozinhar. É esta a mensagem de Bertolucci e da juventude transgressora de 1968, que queria discutir abertamente o sexo e a naturalidade do corpo humano, embora estes temas ainda fossem tabus – ressalta-se aí comportamento de Matthew, que ainda reluta muito até assumir sua nudez como natural.

A realidade invade o sonho com a força de uma pedra que estilhaça a janela. Os jovens, preparados pelas transgressões internas e individuais, partem para a rua e, nos poucos minutos de luta externa retratados pelo filme, há espaço para mais uma discussão entre Matthew e Theo, talvez a mais importante para o "balanço" de Bertolucci: quando Theo agarra o coquetel molotov, Matthew tenta dissuadi-lo do ato, pregando a não-violência e mostrando, com beijos, que a melhor maneira de ação é "fazer amor e não a guerra", como se dizia nos idos de 1968. O coquetel atirado inicia uma brutal repressão da polícia francesa. Seria a fala de Matthew uma crítica de Bertolucci ao modo como se agiu em 1968? Não creio que essa seja a melhor indagação a ser feita após assistir ao filme. Porque ele abre seu leque sobre tantas questões interessantes em torno de temas como maio de 1968, juventude e transgressão, interesses particulares versus privados, considero secundário conjecturar acerca de uma postura pessoal do diretor (a menos que isso seja útil para esclarecer alguma outra questão acerca da obra).

O "balanço" de Bertolucci termina ao som da maravilhosa interpretação de Non, je ne regrette rien, feita por Edith Piaf. O título da canção, traduzido, é o seguinte: "Não, não me arrependo de nada". Certamente, esta escolha não foi uma coincidência.

Título em português: Os sonhadores
Título original: I sognatori
Ano de lançamento: 2003
Duração: 115 minutos (aproximadamente 1 hora e 55 minutos)
Direção: Bernardo Bertolucci

A insustentável leveza do ser

O peso, a leveza e a busca pelo "belo"

Filme psicológico, filosófico ou histórico? Bobagem tentar enquadramentos. A insustentável leveza do ser é um filme, apenas. Um drama construído pelo diretor Philip Kaufman sobre roteiro adaptado por Jean-Claude Carriére. Adaptação, esta, feita a partir do romance homônimo de Milan Kundera, escritor tcheco. O "filme do livro", não é mesmo? Então nossa análise deve necessariamente passar pelo livro. Não. Obras independentes que são, merecem reflexões também diferentes.

O título do filme desvela seu sentido ao longo da obra. Não é colocado somente nas falas das personagens, mas em elementos fílmicos.

O quadro de personagens encontra sua base no tripé "Tomas-Sabina-Tereza". Comecemos por Tomas. Sua aparência sutil, despreocupada, "solta" o torna o símbolo da "leveza". Talvez um pouco exagerada, caricatural. Sempre despojado em suas falas, desafiador, com um sorriso e "jogo" de sobrancelhas irônico, Tomas, interpretado pelo ator Daniel Day-Lewis, é "leve", invadindo muitas vezes, porém, o campo da "canalhice" – a sexualidade é parte integrante do filme. Tal exacerbação não seria de todo ruim – afinal um dos trunfos do filme é exibir e colocar em pauta a sexualidade – se não restringisse as possibilidades de argumento reflexivo presentes em Tomas – afinal, a "leveza" é "insustentável". Sabina é a parceira de Tomas na "leveza". Espírito contestatório, solto, não gosta de estar ou sentir-se presa. Tereza, por sua vez, representa o "peso". O "peso" que interfere na "leveza" e faz com que ela seja insustentável. Franz, professor de uma universidade em Genebra, representa para Sabina o mesmo que Tereza representa para Tomas: a quebra da "leveza", a iminência da catástrofe. Partindo daqui, podemos expandir este argumento para um contexto mais amplo. Não importa, neste caso de análise fílmica, dizer se a estrutura histórica influencia na conjuntura pessoal ou vice-versa. De passagem, diríamos que sim, mas isso é só um acessório para o enredo. Na estrutura do argumento fílmico, é importante notar o jogo entre a "leveza" e o "peso" que a torna insustentável. É baseando-se nesta dinâmica que o filme trata da "Primavera de Praga" e da invasão soviética de 1968: a "leveza" das reformas e do "socialismo com uma face humana" é esfacelada pelo "peso" da invasão soviética. O que importa, no entanto é a leveza do ser, que é insustentável – assim como qualquer leveza. A teoria do "Eterno Retorno" de Nietzche faz-se presente, embora não seja enunciada, e está intimamente relacionada à dinâmica da "leveza" e do "peso". A leveza do ser é insustentável e as situações repetem-se indefinidamente no percurso histórico.

Além da composição das personagens, outro recurso fílmico que trabalha sobre os eixos "leveza" e "peso" é a fotografia. O recurso mais aparente é a contraposição entre "cores" e "p&b". Este é utilizado, na verdade, uma única vez: nas cenas da invasão de Praga. Para além das intenções primárias de conferir dramaticidade e climatizar a tensão do momento, há, em um primeiro momento, uma lógica de alternância entre as cores e sua ausência. A falta das cores inicia-se na transição entre a luz ofuscante do primeiro tanque soviético (na noite do dia 20 de agosto de 1968) e a manhã do dia seguinte, com os tanques e a população na rua. As cores voltam após a morte de dois manifestantes, quando alguma reação aos tanques é esboçada. Somem novamente com mais um avanço das tropas e ora voltam para registrar a reação da população de Praga, ora para efetuar a contraposição com as fotos que tira Tereza (que são "preto-e-branco"). Sinteticamente, as cores, nestes casos, representariam a "leveza", enquanto a ausência delas, majoritariamente relacionada à chegada das tropas do Pacto de Varsóvia, representaria o "peso".

Mas não só o jogo entre ausência e presença de cores está presente no filme. A fotografia opera em conjunto com a dicotomia "leveza-peso" também quando trabalha com a saturação das cores. Nos momentos em que predomina a "leveza" (como nos primeiros tempos de Tereza em Praga ou nos últimos momentos de Tomas e Tereza no campo, por exemplo), a saturação das cores é maior, imprimindo maior vivacidade e "calor" às cenas. Por outro lado, quando a tônica da passagem é o "peso", as cores são menos vivas, ocorre uma dessaturação, deixando a aparência das cenas mais "pesada" (como na volta de Tereza a Praga, após a viagem a Genebra, ou nos momentos em que Tomas e Tereza estão no caminhão voltando do hotel onde haviam dançado na noite anterior, por exemplo).

A tônica geral da montagem do filme é transmitir a angústia que a percepção do sentido de seu título proporciona. Nada é pleno, tudo é melancólico. De duas saídas possíveis para a teoria do "Eterno Retorno" (1 – abraçar a vidar e vivê-la; 2 – adotar uma postura niilista e desesperançada) o diretor "abraçou" a segunda. Por mais que suas personagens tentem "viver suas vidas" buscando a plenitude, o desfecho encontrado é repetidamente o fracasso, a incompletude. O "peso" quebra a "leveza" e – inferência mais sem juízo! – talvez o equilíbrio esteja justamente no incompleto.

Um outro elemento presente no filme chama a atenção: a sensualidade/sexualidade. Além da contestação aos "tabus" que é proposta, pode-se inferir que talvez tal exposição possa refletir, na estrutura fílmica, uma busca pela beleza. Um dos trechos mais belos esteticamente da obra se passa dentro do Ateliê de Sabina em Genebra, quando Tereza a utiliza como modelo e, depois, posa nua. Ali está presente a busca pela beleza, por uma beleza natural, associada à sensualidade. Em outra cena significativa, Sabina, junto a Franz em um restaurante de Genebra, critica a feiúra da sociedade em que vive: flores de plástico, música que incomoda – é barulho, apenas. Não aponta uma saída para isso, mas ridiculariza o gerente e sai dali, no que é acompanhada por Franz. Do lado de fora, declara estar, naquele momento, com desejo sexual. Desejo este que pode estar relacionado à busca pela beleza, uma beleza que associa-se à liberdade e se opõe, por exemplo, ao kitsch – mencionado por Sabina em uma das primeiras cenas do filme. O kitsch, que aparece de maneira extremamente marginal, está relacionado às artes e alude àquelas "enquadradas" em padrões estéticos de regimes totalitários, onde tudo é "sanitariamente" construído e a beleza é falsa. A sexualidade/sensualidade é um elemento importante no filme, e não à toa: a busca da beleza verdadeira, livre, pode estar, dentre muitos outros caminhos, aí.

O fechamento da obra é permeado pelo "incompleto". Tão somente a leveza paira sobre as personagens, Sabina pinta nuvens escuras que anunciam o "peso" de uma tempestade. O filme termina como todas as possibilidades da vida: nunca se sabe o que poderia ter sido. É o "se", a conjectura, naturalmente inútil ao se tratar de escolhas já feitas, de caminhos já percorridos.

Título em português: A insustentável leveza do ser
Título original: The unbearable lightness of being
Ano de lançamento: 1988
Duração: 170 minutos (aproximadamente 2 horas e 50 minutos)
Direção: Philip Kaufman
Gênero: Drama

Adeus, Lênin!

Adeus, Lênin! e o cinema alemão pós-muro

Em 1989, pouco antes da queda do muro de Berlim, a Sra. Kerner (Katrin Sass) passa mal, entra em coma e fica desacordada durante os dias que marcaram o triunfo do regime capitalista. Quando ela desperta, em meados de 1990, sua cidade, Berlim Oriental, está sensivelmente modificada. Seu filho Alexander (Daniel Brühl), temendo que a excitação causada pelas drásticas mudanças possa lhe prejudicar a saúde, decide esconder-lhe os acontecimentos. Enquanto a Sra. Kerner permanece acamada, Alex não tem muitos problemas, mas quando ela deseja assistir à televisão ele precisa contar com a ajuda de um amigo diretor de vídeos.

Adeus, Lênin! marca o ressurgimento do cinema comercial alemão após anos de um período glacial de pouco público e recepção fria dos críticos. O filme de Wolfgang Becker alcançou a impressionante marca de 6 milhões de espectadores e amealhou boas críticas de jornalistas, especializados ou não, e de setores da esquerda ou da direita. No Brasil, por exemplo, sites como do PSTU (parte cultural) e da Revista Veja fazem rasgados elogios ao filme, cada qual com seus motivos. O problema de Adeus, Lênin talvez resida neste consenso. Um filme político (com boas intenções?) que recebe boas críticas de setores tão distintos é motivo de preocupação com o discurso que adota ou com a inocência de quem o recebeu.


A fábula ostálgica [leste+nostalgia] agridoce encantou a Alemanha e mundo. Apesar do “grande” tema histórico que suscita (a Reunificação!) e das láureas que recebeu, o filme adota estratégias narrativas e estéticas convencionais. Logo após a reunificação, a ostálgia ajudou a colocar na tela uma espécie socialismo lúdico que existiria na Alemanha Oriental (Go, Trabi, Go! (1992) é um exemplo)

Em oposição a esse socialismo apareceu em 2006 A Vida dos Outros, de Florian Henckel von Donnersmarck, que aponta para um socialismo bem real e outro grande tema histórico (a Stasi). O cineasta alemão Wim Wenders escreveu em 1992, no Le Monde, que a considera a reunificação como “erro de montagem” e “que não teria sido feita pelo autor, mas pelo estúdio – todo o material bom teria sido abandonado no chão da sala de montagem”. A reunificação “não foi feita com material humano, a história e a linguagem das pessoas que haviam brigado tanto por isso, mas de acordo com uma outra lógica, a dos políticos da Alemanha Ocidental, que precisavam colocar a reunificação na tela muito rápido”. Wim Wenders chegou a um ponto que ajuda na análise de Adeus, Lênin! : a película não tem como objetivo principal fazer críticas à esquerda ou à direita, apesar de fazê-las, mas sim participar de um projeto de normalização das relações leste-oeste na Alemanha reunificada e de uma recepção sem tantos preconceitos da germaneidade (vide que o slogan da Copa de 2006 era “Time to make friends”). Isso por si só explica a grande aceitação do filme em diversos meios e o sucesso alcançado desde o lançamento.

Apesar desse adendo Adeus, Lênin! tem sua importância e seus méritos: consegue mostrar com excelência a marcha de um Estado sobre outro e como a Alemanha Oriental virou rapidamente peça de museu com todos os seus pontos diversos, transformando a RDA em uma espécie de zoológico ideológico. A cena que Lênin passa de helicóptero, dando o seu adeus, é interessante: nessa cena nos podemos tirar conclusões da rápida mudança da antiga pátria socialista ou como (dependendo da visão da pessoa) os comunistas eram iconófilos em relação aos seus líderes intelectuais. Adeus, Lênin! mostra que após a euforia da reunificação a Alemanha encontrou problemas para se acomodar a nova realidade. O filme ressalta valores familiares e a relação de proximidade entre as pessoas, que como já foi dito está em um contexto de melhor recepção do ser alemão no mundo. O filme é, sobretudo, bem filmado, realizado e atuado, o que muito contribuiu para o sucesso da película.

Título Original: Good Bye, Lenin! (Alemanha, 2003)
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 118 minutos
Distribuição: Sony Pictures Classics
Direção: Wolfgang Becker
Roteiro: Wolfgang Becker e Bernd Lichtenberg.

Elefante

Um dia aparentemente comum na vida de um grupo de adolescentes, todos estudantes de uma escola secundária de Portland, no estado de Oregon, interior dos Estados Unidos. Enquanto a maior parte está engajada em atividades cotidianas, dois alunos esperam, em casa, a chegada de uma metralhadora semi-automática, com altíssima precisão e poder de fogo. Munidos de um arsenal de outras armas que vinham colecionando, os dois partem para a escola, onde serão protagonistas de uma grande tragédia.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer o título do filme. O título se refere a uma antiga parábola budista sobre um grupo de cegos examinando diferentes partes de um elefante. Nessa parábola, cada cego afirma convictamente que compreende a natureza do animal com base tão-somente na parte que lhe chega ao tato. Ninguém vê ou sente o objeto na sua totalidade, mas todos arriscam um palpite totalizante – e, naturalmente, equivocado.

O que Van Sant construiu em Elefante foi uma visão fragmentária e não conclusiva sobre a questão trazida à tona pelo episódio de Columbine. Consagrado por saber filmar os jovens sem deturpar seu universo, o diretor adotou um posicionamento inequívoco, aquele de onde se vê tudo e nada ao mesmo tempo: o olho do furacão, o epicentro do evento trágico. Os atores de Elefante são os próprios alunos do colégio em que se passa, selecionados após uma série de entrevistas realizadas pela equipe do filme. Eles são filmados em atitudes cotidianas, às vezes preservando diálogos e situações presenciadas por Van Sant enquanto os conhecia e travava os primeiros contatos.

Elefante não trata de reproduzir o incidente em Columbine, não se trata de cobrir jornalisticamente o massacre. Trata-se de penetrar num determinado universo munido de sentidos aguçados – e nele transitar com puras impressões.

Elefante se passa numa high school como outra qualquer. Ao não citar local nem data, adquire uma dimensão importantíssima, que não reduz o problema a nenhuma ordem social específica, a nenhum contexto específico. Na cena no quarto de Alex, um dos dois garotos responsáveis pelos tiros, esclarece-se a postura essencial de Gus Van Sant perante o tema: enquanto Alex toca Beethoven no piano, a câmera gira 360º mostrando tudo que está à volta dele, todo o universo multicultural e multicolorido que o circunda: videogames, quadros e desenhos na parede (um deles, um elefante), roupas espalhadas, televisão. Quem o levou a arquitetar o massacre? Beethoven? O videogame que ele e o amigo/cúmplice jogam, daqueles em que o jogador assume o ponto de vista de alguém que atira em pessoas que atravessam na sua frente? O documentário sobre o nazismo a que eles assistem na televisão? O acesso fácil às armas de fogo, bastando clicar num site da internet e recebê-las em casa, via fedex? Tal resposta nunca emerge das imagens de Elefante. Nenhum trabalho atinge o que o filme conseguiu atingir nesse universo estudantil estadunidense, seja em matéria de suspense, seja em matéria de captação imediata de um acontecimento.

É possível que Elefante tenha uma passagem discreta pelo grande público, não raro encontrando detratores pelo caminho. Elefante sem dúvida alguma assusta, mas sua verdadeira contribuição é de ordem construtiva, e a construção em jogo é o sentimento de uma geração (com seu modo particular de percepção do tempo, com sua não-historicidade, com seu universo simbólico multifacetado). Se no fundo nenhum filme é obrigatório, por se tratar, em última instância, apenas de um filme, digamos então que Elefante é no mínimo muito importante – e que não é definitivo porque não quer ser.

Título Original: Elephant (EUA, 2003)
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 81 minutos
Distribuição: HBO Films
Direção: Gus van Sant
Roteiro: Gus Van Sant

Salvador

Salvador e a criação capitalista do mito nacional

Salvador Puig Antich (Daniel Brühl), jovem catalão, anarquista e militante do MIL (Movimiento Ibérico de Libertación) - uma organização que arrecadava dinheiro por meio de assaltos a bancos para o movimento operário. No decorrer da operação de captura de Salvador e de integrantes do grupo, ocorre um tiroteio que resulta na morte de um policial. Julgado por um conselho de guerra Salvador é condenado à morte por garrote vil, arma de tortura medieval na qual a pessoa tem seu pescoço esmagado até a morte.

A sinopse acima não dá a pálida idéia de como Salvador, película dirigida por Manuel Huerga e baseado no livro de Francesc Escribano ‘Cuenta atrás. La historia de Salvador Puig Antich’, é problemático. Huerga constrói um filme que parte de um erro histórico: o MIL não era um movimento de oposição anti-franquista e sim um movimento anticapitalista que, por conseguinte, era anti-franquista. Este erro é importante porque, a partir dele, é construída a imagem fílmica de Puig Antich. Para a película ele é um jovem que, como tantos outros, lutava contra a ditadura de Francisco Franco e não, primeiramente, contra o capitalismo e a favor de uma sociedade sem classes. Além disso, o filme ignora e esvazia completamente o Movimiento Ibérico de Libertación, não mostrando cenas que refletem a realidade cotidiana da maioria da população trabalhadora, assim como nenhuma cena vinculada a seus protestos. Para terminar, os integrantes do MIL são mostrados como playboys que assaltam bancos por diversão e que não sabem nem sabem por que lutam, pois na hora de ler o motivo de sua luta dão risada do tal documento!

Os problemas citados acima são apenas os políticos. Além desses, o filme sofre pelo excesso de melodrama que é adicionado e pelo excesso de humanização dos personagens, inclusive de Puig Antich. As cenas de sexo são dispensáveis, a ‘grande’ amizade que ele faz com um guarda (Jesus, interpretado por Leonardo Sbaraglia) é inverossímil (bem como a revolta deste quando da execução de Salvador) e os maneirismos do diretor são evidentes. Fica claro que o capitalismo, representado neste caso pelas empresas patrocinadoras do filme, não gostaria de um filme que combatesse o próprio capitalismo. O capitalismo desejava a criação de um herói, um mito nacional que primeiramente (e seriamente) lutava contra Franco e só posterior, e muito ralamente, por uma sociedade sem classes. Puig antich é tão herói que nem tem coragem de assaltar os bancos, ficando assim como motorista do grupo. Ou seja, o capitalismo (o filme) apreende os acontecimentos (Revoluções?), mastiga, rumina e nos devolve algo politicamente correto, mas politicamente inativo. Não se trata de nenhum tipo de antipatia por Puig Antich: ele foi e ainde é um marco importante na história espanhola, assim como o grupo do qual fazia parte; o problema está tão somente nesta sua criação fílmica específica.

Este filme pode ser trabalhado por professores primeiramente para mostrar “o que aconteceu na história?” (a ditadura espanhola e uma das formas de reação a ela, a ação direta) e também pode ser usado para a criação do espírito crítico nos alunos, mostrando que a história (ou pessoas na história) são frutos da imaginação e do discurso, seja no cinema, seja nos livros.

Nome: Salvador
Gênero: Drama
Ano/Produção: 2006/Espanha
Duração: 128 min.
Diretor: Manuel Huerga
Elenco: Daniel Brühl, Tristán Ulloa, Leonardo Sbaraglia, Leonor Watling
Distribuição: Europa Filmes, cópias dubladas e legendadas.

Material de Apoio:
* DOMÍNGUEZ RAMA, Ana “Salvador (Puig Antich) en el Viejo Mundo. Algunas consideraciones históricas respecto a su recuperación mediática” in Hispania Nova. Revista de Historia Contemporánea. Número 7 (2007).
* http://www.salvadorfilm.com
* http://www.salvadorpuigantich.info

Laranja mecânica

Laranja mecânica: cultura da contracultura, governo do desgoverno

Para uma melhor análise do filme Laranja Mecânica, é importante contextualizá-lo na época de sua produção. Burgess escreveu o livro em 1962 e o filme foi lançado em 1971, no auge da chamada contracultura. As décadas de 1960 e 70 produziram um conceito artístico de grande apelo visual. Cores fortes, vibrantes eram a marca deste movimento, que produziu inúmeras capas de discos tais como o famoso Sargent Pepper’s dos Beatles.

No filme dirigido por Kubrick esta influência faz-se presente nas cores fortes e contrastantes, assim como na trilha sonora (que parte da idéia contrária do modernismo, que se associa à criação do novo, para a idéia de que tudo já foi criado e a partir de então tudo será re-criado, re-visto, re-lido). Laranja Mecânica conta a história de Alex, do ponto de vista da narrativa em primeira pessoa. Logo no início, ele revela suas intenções: praticar a velha ultraviolência, ajudados pelos seus companheiros. Para tal, espanca um velho mendigo que cantava solitariamente e divagava sobre a eficiência da Lei e da Ordem. Posteriormente, entra numa rixa com uma gangue rival e vence. Já na casa de um escritor famoso, pratica estupro contra a esposa do anfitrião seguido sob a canção sugestiva "I’m singing in the rain". A trilha dessa primeira parte, quase toda erudita, simbolicamente ligada ao espírito da perfeição, do clássico e da virtude, é usada no seu sentido contrário, fazendo uma “cama” sonora para a violência e degradação ética e moral.

A sutileza do filme não se resume a uma análise fria da opressão da sociedade, da violência desenfreada e da critica à libido dominante. Kubrick traz à tona um dos problemas fundamentais da condição humana: a escolha. Se a obra de arte tem algo a acrescentar ao espírito humano, talvez seja o abismo que a escolha provoca e que se reflexe nos atos dos indivíduos: o livre arbítrio que cada um possui e que o Estado faz perder Pode-se citar o momento em que Alex submete-se a um tratamento criado pelo governo para por um fim a criminalidade. Esse tratamento faz com que Alex reaja fisicamente a cenas de violência e estupro por meio do uso de uma tela de cinema e um comprimido que provoca náuseas. A partir deste tratamento, ele se sente impedido de praticar qualquer ato de violência. O enjôo físico condiciona sua ação sem, no entanto, obstar seu espírito. O Governo, esperançoso com o "sucesso" obtido pela técnica, libera Alex de volta ao convívio social.

Nesse momento, a genialidade do filme desponta através do "efeito espelho" das cenas. Alex volta para casa, encontra seus pais indiferentes e um inquilino considerado como filho. O velho mendigo que havia sido agredido por ele o reconhece e desconta as pancadas junto com outros velhos. Os antigos companheiros, agora policiais, levam-no a um terreno e fazem o mesmo. Ou seja, o escritor vê Alex como fruto de sua vingança pessoal e, para tal, usa "Ode à Alegria", de Beethoven, um hino à irmandade e à humanidade, em sua tortura auditiva, transformando a música na sensação pura do ódio, da raiva e da lembrança da agressividade humana. Não há escolha para Alex e ele tenta o suicídio.

Isso causa um mal estar no Governo que, pressionado pela impressa em época de eleições, faz uma aliança inesperada entre Governo e Alex, como simbolismo da cura verdadeira do personagem. Nesta cena é tocada mais uma vez a mesma peça de Beethoven, agora novamente re-significada, fato que leva Alex ao êxtase e sugere uma “leve” distorção da alegria da humanidade sonhada pelo grande compositor. Este é o fim pessimista que Kubrick realiza em sua magistral obra cinematográfica.

Título Original: A Clockwork Orange (Inglaterra, 1971)
Gênero: Ficção Científica
Tempo de Duração: 138 minutos
Distribuição: Warner Bros.
Direção: Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick, baseado em livro de Anthony Burgess.

Páginas da Revolução

Em Páginas da revolução, lidamos com a juventude pelos olhos de Pereira. O personagem principal é um senhor cuja solidão é disfarçada por suas cotidianas conversas com o retrato da esposa falecida. Vê-se em idade avançada e se maravilha, ainda que com angústia, com uma crônica sobre a morte.

O filme passa-se em Lisboa, no ano de 1936. Antonio de Oliveira Salazar é o presidente de Portugal e a Espanha vive a tensão da Guerra Civil que naquele mesmo ano culminaria na ascensão de Francisco Franco. Está-se, portanto, num contexto de grande tensão nos dois países ibéricos e, numa escala ainda maior de análise, no enraizamento de regimes de extrema direita na Europa (considerando-se, além dos casos espanhol e português, Itália e Alemanha). Pereira, editor de cultura de um jornal lisboeta, decide preparar de antemão alguns necrológios de escritores ainda vivos para não precisar fazê-los às pressas. O personagem procura estabelecer contato com o autor da crônica que lera, supondo ser um homem bastante vivido e culto, ideal para seu projeto. Eles marcam um encontro e Pereira conhece Monteiro Rossi (interpretado por Stefano Dionisi) e sua namorada, Marta (Nicoletta Braschi). Ambos jovens, idealistas, opositores à ditadura de Salazar.

O filme traz elementos importantes sobre juventude e morte. O encontro do casal com o editor dá-se em um baile em que é notável a presença da ditadura salazarista: crianças vestem-se com trajes militarizados e ocorren discursos de exaltação. A jovialidade de Rossi e de Marta é intensa, forte. Possuem a poesia de jovens rebeldes, mas estão no papel de contrarrevolucionários. A revolução era vista como a instauração dos regimes totalitários e os que se opunham a isso eram censurados, perseguidos. A imagem de crianças da Juventude Salazarista, no entanto, mostra o caminho escolhido pelo governo para a formação dos jovens em seu território.
A morte, que vem no começo do filme como um acontecimento natural, vai se tornando uma presença constante e carrega aquela mesma poesia do heroísmo de uma morte por uma causa justa. A morte, naquele contexto histórico, é também musa inspiradora dos revolucionários de extrema direita, como o mote de "¡Viva la Muerte!" dos fascistas espanhóis.
Pereira, que se mostra a princípio um senhor pacato, começa a se envolver nesse enfrentamento de forças e ideologias. E enfrenta resistência no próprio prédio, na figura de uma zeladora delatora. Um outro personagem interessante é o barista Manuel que informa Pereira dos acontecimentos da rua, já que o próprio jornalista não entra em contato com essa realidade em seus meios de comunicação fortemente censurados.

Um material à parte para ser analisado são os autores citados ao longo do filme, sobre os quais Monteiro Rossi predispõe-se a escrever. Personagens reais, eles estavam em oposição direta a esses regimes totalitários que se firmavam na península ibérica. Seus poemas carregam o peso da época - aquele início de século XX na Europa.

Baseado no livro "Afirma Pereira", de Antonio Tabucchi.


Título Original: Sostiene Pereira
Ano de lançamento ((Portugal, França, Itália): 1996
Tempo de Duração: 104 minutos
Distribuição: Fábrica de Imagens, Jean Vigo International, K.G. Productions
Direção: Roberto Faenza
Roteiro: Roberto Faenza, Antonio Tabucchi e Sergio Vecchio.